quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Praxe ou "vai chatear os teus amigos"



Também tenho de deixar a minha opinião num dos assuntos quentes da época: praxe. 
E a minha opinião é muito simples: é das coisas mais estúpidas a que já assisti. Porque praxe, como a conheço, tem piada 5% do tempo e é absolutamente ridícula e humilhante o resto do tempo. Pelo que os momentos raros não compensam a estupidez do período que prevalece.

Rodeada de estudantes de saúde de vários cursos, via caloiros a correr em todas as direcções enquanto os estudantes trajados lhes atiravam ovos (crus e cozidos)  que provocam todo o género de nódoas negras e lesões musculares (por acertarem com toda a força em músculos em contracção). Outros, em pleno outono/inverno, rebolavam por encostas enlameadas e assim ficavam o resto do dia -- sujos, gelados e a espirrar desalmadamente nos dias seguintes. Havia ainda a praxe soft que consistia em insultos (mais imundos do que os que ouço em estádios de futebol) perante uma plateia de quatro e a olhar para o chão por tempo indeterminado; ou na astúcia das meninas trajadas (e invejosas) que cortavam o cabelo às caloiras mais giras. A praxe só tinha graça para pessoas sem a menor sensibilidade, sem capacidade de empatia, e claramente com neurónios em falta. Os caloiros que aceitam estas 'condições de integração' são jovens em formação que precisam ser protegidos da sua própria falta de confiança e assertividade.

Não importa se dizem que a praxe tem como objectivo integrar os recém-chegados, se na prática tem como objectivo subjugá-los. Não me interessa se a intenção é boa, porque de boas intenções está o inferno cheio. Se a praxe fosse boa não haveria necessidade de procurar caloiros como cães de caça à procura das presas; os caloiros procurá-los-iam. Oferecer-se-iam para participar nas actividades que estavam a gerar gargalhadas colectivas. É que ninguém que se vê no meio de centenas de pessoas novas que parecem ser o máximo, foge delas. Pelo contrário. Se a praxe fosse boa os caloiros não se esgueiravam por tudo quanto é esquina.

A praxe como a conheço é sinónimo de coação, não de divertimento. A "Não vou ser praxado/a" segue-se uma chuva de argumentos que visam fazer com que o caloiro se sinta condenado à exclusão social para todo o sempre a menos que aceite reconsiderar. Argumentos espectaculares como aqueles que me dirigiram: "Os outros caloiros não são autorizados a falar contigo" ou "Ninguém é autorizado a emprestar-te apontamentos". Não pude evitar sorrir perante as ameaças. Se alguém não me falasse apenas por respeitar tais ordens: far-me-ia um favor. Um favor na pré-selecção de amigos, porque não me dou bem com pessoas fracas. Felizmente não conheci nenhuma. Em relação aos apontamentos, se os caloiros só conseguiram começar a frequentar as aulas já o primeiro mês de faculdade estava a terminar, como é que era suposto tirarem apontamentos? :P Eu e meia dúzia de gatos pingados ocupamos os enormes auditórios vazios nesse primeiro mês. Mas como não eram os "doutores" -- os tais que ainda não se formaram em coisa nenhuma mas gostam da massagem ao ego -- a pagar as propinas dos meninos impedidos de frequentarem as aulas, estava tudo bem.

Eu sei que não é bonito, mas confesso que não evitei um sorriso de troça quando semanas mais tarde comecei a ver nas aulas de farmacologia (cadeira conhecida pela alta taxa de reprovação) os "doutores". Vi também o dux em mais do que uma cadeira de primeiro ano. Dono de uma dose de matrículas muito acima da média, a presença dele nos auditórios era bem diferente daquela que acompanhava os seus berros fora das aulas -- cabeça baixa, meio enterrado na cadeira. Pelo visto na sala de aula tinha vergonha de se assumir como o estudante mais incompetente aqui da malta, mas fora das aulas isso era motivo de orgulho. Nunca percebi a incoerência. Ou se calhar percebo. A incompetência no campo em que deviam ser bons (no curso!) fá-los ser particularmente maus na praxe, para aliviarem o (possível) sentimento de inferioridade em pessoas que não têm culpa nenhuma.

Bom, tudo para dizer que brincar é uma coisa e praxe é outra muito diferente. Estou certa que se a praxe fosse salutar não estariamos agora a considerar proibí-la.

15 comentários:

  1. Olá querida ABT,
    Pouco mais vou acrescentar ao teu texto, digo só que as pessoas deviam ter dignidade humana em todas as situações na vida.

    beijinhos.*

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    1. É precisamente isso, Serginho. Dignidade. Acções correctas baseadas na justiça e direitos humanos. Coisas muito em falta na praxe.

      Beijinhos*

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  2. "Porque praxe, como a conheço, tem piada 5% do tempo e é absolutamente ridícula e humilhante o resto do tempo."

    "Não importa se dizem que a praxe tem como objectivo integrar os recém-chegados, se na prática tem como objectivo subjugá-los."

    ""doutores" -- os tais que ainda não se formaram em coisa nenhuma mas gostam da massagem ao ego"

    "Estou certa que se a praxe fosse salutar não estariamos agora a considerar proibí-la."

    Por mim podias ter feito um post SÓ com estas frases que eu já aplaudiria de pé.

    E concluo este comentário com um apontamento: a primeira artista que ousasse aproximar-se de mim de tesoura em riste para me cortar um fio de cabelo que fosse, ficava na hora sem os dois olhos. É que é certinho!

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    1. Tenho a certeza que sim ;) Mas eles 'cheiram' o medo das pessoas. Só se atrevem quando percebem que se vão safar tranquilamente dos actos absurdos que cometem.

      * * *

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  3. Não me vou alongar, porque já é do conhecimento público que a minha opinião relativamente ao conceito de praxe é diferente da tua :P
    Digo apenas que muitos exemplos que referiste no teu post NÃO SÃO de forma alguma praxe. Não se enquadram no conceito de praxe. Lá por haver doutores que praticam esses actos como suposta praxe, não é esse o conceito de praxe. Mas brevemente irei fazer um terceiro post sobre este tema (já comecei a escrevê-lo, mas esta semana confesso-me sem muita disponibilidade para o concluir :$)

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    1. Roger, aguardo o teu post com curiosidade. No entanto, deixa-me reforçar que o nome que dás a alguma coisa não define essa coisa. Ou seja, dizes que os exemplos do meu post não são praxe, provavelmente porque não se encontram de acordo com o código de praxe de que falas. Acontece que aqueles exemplos são praxe sim, uma vez que foram levados a cabo no contexto da praxe. A teoria não interessa, interessa o que acontece na prática. E na prática a praxe é feita de muitos exemplos como os que dei.

      Se a praxe for proibida proíbe-se a formação de seita, o secretismo que lhe é associado, e a força que os indivíduos abusivos têm por não estarem sozinhos, mas num grupo.

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  4. Acredito que o evento trágico da praia do Meco, marca o início do fim das praxes...o que subscrevo integralmente!

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    1. Espero que tenhas toda a razão na tua previsão, mmm's. Torço por isso!

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  5. Revejo-me completamente nas tuas palavras ABT. No facto da praxe ser algo humilhante (e até traumatizante) que em nada contribui para a integração dos estudantes no ambiente académico. Sempre fui contra e aquilo que vejo, de ano para ano, reforça ainda mais essa minha convicção.
    Beijinhos

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    1. Faço meu o teu belíssimo resumo, Helena.
      Beijinhos :) *

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  6. O grande destaque do teu texto. "Como a conheço", diz tudo. Aquilo que tu conheces, não é praxe. Mas há um mundo de praxes para além do que conheces. A diferença é que neste momento é muito fácil aparecerem pessoas a dizer que as praxes são uma vergonha. Quando aparecem alunos a dar o exemplo de uma boa praxe. ninguém os quer ouvir.

    Como já te disse no meu blogue, não acho que devemos ter como exemplo de praxe aquilo que se passou no Meco. Até porque aquilo são rituais específicos dentro da comissão de praxe. O grande erro neste momento é olhar para o Meco e assumir que todas as praxes são assim.

    beijos

    homem sem blogue
    homemsemblogue.blogspot.pt

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    1. HSB, na minha opinião cometes o mesmo erro que o Roger: dás demasiada importância ao que deveria ser a praxe, de acordo com o seu código escrito, e pouca importância ao que é a praxe na vida real. E na vida real os exemplos de praxe degradante, estúpida, e humilhante são "mais do que muitos" e é necessário pôr cobro nisso. Como te disse no último comentário: "Se não proibirmos a formação de seita universitária (vamos mudar-lhe o nome) vamos continuar como estamos: com um código penal que não se aplica a ninguém, porque o pacto de silêncio não permite que se apurem os suspeitos."

      Beijinho*

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    2. Tu garantes a pés juntos que existem muitos casos maus. (é verdade que existem) mas recusas aceitar que existem igualmente muitos casos bons. (é verdade que existem).

      Eu dou muita importância às boas praxes, tu entendes que tudo o que aconteceu recentemente é recorrente nas praxes.

      São pontos de vista.

      beijos

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    3. ​Não recuso aceitar que existem casos bons, HSB (relê a terceira frase do meu post). O que recuso é aceitar que esses façam valer a pena os casos maus (que ainda por cima são protegidos pelo silêncio de praxe). É bastante diferente.​ ​
      Como já referi inúmeras vezes, não há nada que se possa fazer no contexto do que chamas 'praxe boa' que fosse impossibilitado de ser feito se a praxe for proibida. Ou há?

      Nota: O aconteceu recentemente (possivelmente) envolvendo a praxe foi o caso do Meco. A que eu não me referi em momento algum. Portanto, não sendo isso de que me acusas de achar recorrente nas praxe, não sei a que te referes. Podes ser mais claro?

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  7. Sabes o que me faz impressão neste tipo de praxe que descreves?
    É o uso de comida! ... é o desperdício!

    Acho que está errado. Faz-me confusão. E ao preço em que estão ovos, leite, enfim, os bens alimentares básicos em geral, até me causaria uma taquicardia ver os alimentos a serem atirados fora dessa forma, sujando as ruas, deixando tudo uma imundice...

    Uma coisa é ser carnaval - é que nem no carnaval se costumava usar - em outros tempos, tanta comida, tanto ovo... Eram todos ali pedinxados e ai das mães se descobrissem que lhes tinham ido à dispensa...

    Com a fome que se sabe que algumas pessoas se calhar até próximas de nós passa - li até uma vez um relato de uma estudante universitária que não tinha dinheiro para comer e o escondia de toda a gente. Que estava a passar fome. Ela dava valor até a um pedaço de pão abandonado em cima de uma mesa.... Acho que não está correto.

    Compreendo brincadeiras e até brincadeiras com comida. Mas neste contexto acho deprimente, errado, não sei explicar. Uma coisa é ter uma brincadeira, mútua, e usar um pouco de farinha e atirar ao parceiro, ou um ovo no carnaval... outra é os quilos e quilos de mantimentos alimentares a que algumas destas praxes recorrem para dar azo às suas "brincadeiras". "Stocks de supermecado chegam a esgotar. É tão absurdo!

    E se calhar, entre aqueles alunos caloiros ou não caloiros, existe um a passar fome. Um que ia adorar ter meia dúzia de ovos em casa...

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