sábado, 26 de outubro de 2013

Do que a amizade resolve



Apesar de enojada com tais atitudes, é-me inevitável pensar que dor intensa será essa que chega ao ponto de fazer aqueles rapazes preferirem ser reconhecidos por uma atrocidade do que continuarem a ser ignorados. E pensar nisso magoa-me.

Sei bem o que são alunos-problema. Não do género quietinho até se lembrar de matar mas do género todos os dias tenho de partir alguma coisa e ameaçar alguém de o partir ao meio também senão nem fico bem. E eu não lidava bem com a personagem. Até que um dia trouxe o problema para casa e aprendi que às vezes as pessoas mais problemáticas são as que precisam de mais ternura. Mas isso de dar ternura a um corrécio não é fácil. Ou é?

No dia seguinte, de coração aberto e lavagem cerebral feita pelos meus pais, deixei a turma inteira a olhar para mim como se fosse um extra-terrestre (E.T) quando, vendo o aluno-problema saindo da aula a empurrar cadeiras, lhe interrompi a marcha para perguntar se não queria almoçar connosco.

Não foram só os meus amigos que me olharam como se eu fosse um E.T.: ele também. E caindo-lhe ao chão toda a brutalidade, gaguejou que sim, se os outros não se importassem. Os outros importavam-se mas, sabendo que eu o detestava até ao dia anterior, apoiaram o convite provavelmente curiosos com o que sairia dali.

O aluno-problema transformou-se no Abílio, em pouco tempo. Sem surpresa tinha uma história de vida confusa, difícil, de violência doméstica constante. Nessa partilha que lhe fazia falhar a voz encontrou olhos marejados em lágrimas e abraços, e um grupo de pessoas que se tornou a família dele na escola. Deixou de ser chamado ao Conselho Directivo por desacatos, as notas subiram, era afável e amoroso num jeito tímido típico de quem não estava habituado a ser assim. Era uma pessoa diferente. Uma pessoa maravilhosamente diferente.

A turma acabou por receber uma homenagem da directora de turma, em nome do Conselho Directivo. O Abílio ganhou a possibilidade de se sentir integrado na escola e ganhou, principalmente, um horizonte mais alargado sobre quem podia ser: não por causa mas apesar do clima familiar. E nós conquistamos não apenas um colega mais ponderado, mas um verdadeiro amigo. 

Tudo porque um dia lhe perguntamos se queria almoçar connosco.

Às vezes resolver um problema é mais fácil do que parece. Ser um problema também é mais fácil do que parece. E quanto mais nos distanciamos do equilíbrio entre tentar ser melhor e contribuir para resolver o que vemos de errado à nossa volta, mais probabilidade temos de comprometer o nosso futuro.



4 comentários:

  1. Por questões pessoais (porque uma parte da minha vida, ainda que indirectamente, já esteve ligada a Massamá e à Escola Secundária Stuart Carvalhais), não vou comentar o caso em si.

    Mas o exemplo que dás neste teu post prova que os rufias (também conheci casos assim) muitas vezes são pessoas a quem falta muita coisa em casa - e foi uma bela atitude a tua, de convidar o rufia para almoçar com o grupo. E por vezes também têm tudo em casa, mas são marginalizados pelos colegas de escola. Cada caso é um caso e acho que não podemos pôr tudo no mesmo saco. Sim, existem psicopatas e sociopatas e por aí fora. Mas também existem pessoas que são "só" sedentas de carinho e atenção.

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    1. Que bela conclusão de comentário, Roger. É triste saber que esta realidade está por todo o lado, mas bom perceber que aos poucos as coisas podem mudar. Estarmos mais atentos tornará os nossos filhos mais preparados também.

      Obrigada pelo cumprimento :) Mas os meus pais merecem-no mais do que eu. Fui apenas o reflexo do que me ensinaram.

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  2. Olá querida ABT,
    Não vou acrescentar muito mais até porque o Roger deixou o seu comentário e contou mais uma história desse tipo e realço as tuas palavras mais uma vez: "às vezes as pessoas mais problemáticas são as que precisam de mais ternura."
    Um dos erros da sociedade é separar o bom do mau mas essa separação é definitiva é como se quisessem por obra mágica eliminar o mal do mundo mas isso é um erro porque só o amor e gestos contrários ao desses jovens se consegue isso. Também explica porque a sociedade ao longo dos anos não evoluiu, os gestos ficam na gaveta e as palavras mágicas nascem dia após dia.

    Realço mais uma vez o que fez esse pequeno gesto e pelas tuas palavras: " O aluno-problema transformou-se no Abílio, em pouco tempo. Sem surpresa tinha uma história de vida confusa, difícil, de violência doméstica constante. Nessa partilha que lhe fazia falhar a voz encontrou olhos marejados em lágrimas e abraços, e um grupo de pessoas que se tornou a família dele na escola. Deixou de ser chamado ao Conselho Directivo por desacatos, as notas subiram, era afável e amoroso num jeito tímido típico de quem não estava habituado a ser assim. Era uma pessoa diferente. Uma pessoa maravilhosamente diferente.
    A turma acabou por receber uma homenagem da directora de turma, em nome do Conselho Directivo. O Abílio ganhou a possibilidade de se sentir integrado na escola e ganhou, principalmente, um horizonte mais alargado sobre quem podia ser: não por causa mas apesar do clima familiar. E nós conquistamos não apenas um colega mais ponderado, mas um verdadeiro amigo."

    beijinhos e boa semana.


    PS: Adorei a imgem, faz-me sempre lembra a amizade verdadeira e sincera*

    PS: Parabéns aos teus queridos pais e um beijinho a eles, somos sempre fiéis à sua obra e ao seu amor, um orgulho sempre para eles, :)*

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    1. Até me deixas-te sem palavras*
      Deixo-te então um beijinho e o meu obrigada :)

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